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O presente texto decorre de Um projecto inglês: a influência da arquitectura anglo-saxónica nas Torres de Alfragide – trabalho final realizado no âmbito da vertente teórica da disciplina de Projecto Final de Arquitectura no ano lectivo de 2010/2011 no ISCTE. Elaborou-se uma pesquisa sobre a temática da cidade e sua inserção no território. Sob o título Optimist Suburbia, termo que resume, no meu entender, todo o trabalho desenvolvido nesse ano, foi feita uma análise de projectos portugueses que tentaram “fazer cidade” no contexto suburbano de Lisboa dos anos 50-70: a Urbanização de Nova Oeiras, de Luís Cristino da Silva (1953-71); as Torres de Alfragide, do Atelier Conceição Silva (1968-74); e a Urbanização da Portela de Sacavém, de Fernando Silva (1959-79).
     Na sequência desta pesquisa geral, em que se abordou em particular o trabalho desenvolvido no Atelier Conceição Silva, surgiu, depois da pesquisa de diversas obras do Atelier Conceição Silva e da entrevista realizada ao arquitecto Tomás Taveira – colaborador neste atelier entre 1965 e 1972 –, o interesse pelas eventuais influências da arquitectura anglo--saxónica no projecto das Torres de Alfragide.
     Procurou-se, através da análise de projectos britânicos, detectar nas Torres de Alfragide influências directas ou indirectas dessas obras e da cultura arquitectónica anglo-saxónica em geral. Para esse fim foi realizada uma viagem ao Reino Unido, possível de ter sido efectuada pelos arquitectos portugueses que visitaram o país britânico nessas décadas.
     Verificou-se, então, que no Portugal de 1960, só através de artigos publicados em revistas estrangeiras ou, idealmente, através de viagens de estudo, se poderia ter uma proximidade real com a arquitectura inglesa do pós-guerra. Verificou-se, também, que o contacto superficial com a arquitectura brutalista, aquando da sua internacionalização, fez com que esta se difundisse essencialmente pela sua componente estética, uma vez que, como sabemos, a imagem circula de maneira muito mais rápida e eficaz do que a teoria. A este facto não foi totalmente alheia a influência de Le Corbusier no movimento inglês tornando-se a fonte de inspiração mais abrangente da estética dita “brutalista” no mundo inteiro.
     Constatou-se também que o ambiente no Atelier Conceição Silva era bastante propício à pesquisa formal e espacial, e que era dada bastante liberdade de concepção aos seus colaboradores.
     Recebendo revistas e livros estrangeiros, pagando salários acima da média e mantendo um confortável e constante número de projectos em carteira, o Atelier Conceição Silva foi, de facto, um local privilegiado para o desenvolvimento de uma arquitectura sem constrangimentos, que não os da própria concepção arquitectónica, permitindo a pormenorização dos projectos até ao mais ínfimo detalhe.
     Na época em que as Torres de Alfragide foram edificadas, o habitar nos subúrbios lisboetas era visto como uma alternativa, para a classe média-alta, à vivência mais agitada do centro da capital. A comunicação com Lisboa era rápida, devido ao acesso de automóvel possibilitado pela auto-estrada Lisboa-Cascais, graças à abertura do Viaduto Duarte Pacheco.
     Consistindo numa verdadeira mudança de hábitos – viver no subúrbio e trabalhar na cidade –, a classe mais abastada procurou opções de habitação próximas da capital, mas com relativa independência, que propiciassem uma maior qualidade de vida. O plano das Torres de Alfragide procurou responder a essa necessidade, colmatando a falta de planos de ordenamento capazes de assegurar a criação efectiva de cidades-satélite em redor de Lisboa – ao invés do que aconteceu, por exemplo, em Londres.
     Em Alfragide, o Atelier Conceição Silva pretendia “fazer cidade”, e o complexo das torres, com o seu centro cívico e comercial, serviria como um dos novos núcleos de um desenvolvimento coerente de um subúrbio.
     Como o Atelier Conceição Silva controlou todo o processo, desde a posse dos terrenos até à construção e venda, estava composto um cenário onde era possível o aprofundamento total das questões arquitectónicas da habitação.
     A organização interior dos apartamentos é, então, tratada quase como numa moradia unifamiliar, retomando e desenvolvendo temas da habitação mediterrânica já anteriormente explorados, por exemplo, nas Moradias da Balaia (1966).
     Nas zonas públicas das Torres de Alfragide sente-se mais a influência inglesa.
     As fontes desta obra não são, porém, completamente óbvias, sendo que o desenho das torres é, no seu conjunto, bastante rico – talvez precisamente por cruzar essa vivência mediterrânica com as novidades britânicas –, não sendo, seguramente, inferior em termos qualitativos quando comparado com os projectos habitacionais do casal Smithson, de Stirling e Gowan, ou mesmo do modernismo maduro de Lasdun.
     Apesar da influência inglesa, certas características das Torres de Alfragide afastam-se dos princípios do Novo-Brutalismo, enunciados por Reyner Banham. Segundo o crítico inglês, para um projecto ser considerado brutalista deveria responder a três princípios: ser memorável como uma imagem; ter uma estrutura claramente apreensível (não só a estrutura física, como a estrutura funcional); e utilizar os materiais no seu estado natural.
     As Torres de Alfragide não são um projecto tão claramente apreensível como, por exemplo, a escola de Hunstanton de Alison e Peter Smithson (1949-54). Também não utilizam os materiais de forma tão “bruta” como, por exemplo, os apartamentos de Ham Common de Stirling e Gowan (1955-58).
     Mas são, inegavelmente, “memoráveis como uma imagem”, como ponto de referência numa paisagem sem edifícios de significado, sendo esse um dos pontos em comum com o Complexo Habitacional de Barbican (Chamberlin, Powell e Bon, 1956-83).
     Apesar da sua estrutura nem sempre ser visível e de não ser um edifício com uma organização simples, a disposição independente dos apartamentos das Torres de Alfragide em redor do núcleo de acesso, como se de um cluster se tratasse, remete para a “clara relação entre as partes” de que fala Reyner Banham, característica que partilha com a Keeling House de Denys Lasdun (Londres, 1955-59).
     Além disso, em alguns projectos brutalistas, os elementos funcionais passam a ser protagonistas. No caso das Torres de Alfragide assistimos a uma forma de homenagem à caixa de escadas do Edifício de Engenharia da Universidade de Leicester (Stirling e Gowan, 1959-63), que é reinterpretada na caixa de escadas em Alfragide.
     Por último, embora sejam predominantes, nas torres, as superfícies rebocadas, a sua aplicação e conjugação com o betão aparente, o vidro e a madeira no seu estado natural, é próxima do “tratamento dos materiais” dos projectos brutalistas. 
     No entanto, mesmo estas categorias de Banham poderão ser reequacionadas, especialmente agora que passam 56 anos desde o seu primeiro artigo sobre o Novo Brutalismo1 e 45 anos desde a publicação de The New Brutalism: Ethic ou Aestethic, onde Banham anuncia a dissolução deste movimento e onde deixa transparecer um certo desencanto em relação às propostas falhadas e à evolução da arquitectura dos seus “protegidos”.
     O próprio Banham entra em contradição quando, em 1964, elogia o Edifício de Engenharia da Universidade de Leicester pelo seu carácter icónico, pela sua clareza organizacional e pela utilização “as found” de materiais baratos e industriais, declarando-o não-brutalista dois anos depois por não ter nenhuma referência (pelo menos evidente) à obra de Le Corbusier.
     O que Banham viu como o fim do movimento novo-brutalista talvez fosse, na verdade, simplesmente a sua inserção na produção arquitectónica corrente, e não mais o idealismo irrealizável que propunha uma arquitectura totalmente “outra”.
     O edifício em Leicester de Stirling e Gowan, e o cluster do The Economist de Alison e Peter Smithson (Londres, 1959-64), talvez tenham sido, no fundo, não uma retirada do movimento, mas na verdade o seu apogeu, a sua transformação em “world-class [architecture]”2, como o próprio Banham designou o Edifício da Engenharia.
     Seria característica essencial do Novo Brutalismo ser uma arquitectura marginal?
     O entusiasmo com que foram recebidos estes dois edifícios faz-nos ponderar sobre se o movimento novo-brutalista não terá, de facto, aberto múltiplos caminhos para a arquitectura da segunda metade do século XX, sem ter perdido na totalidade as suas premissas fundamentais.
     Ambos os edifícios são icónicos, estrututalmente claros e estimulantes, e os materiais são tratados, embora com um certo refinamento, sem perder a sua objectividade e o seu carácter “bruto” e não tratado.
     As Torres de Alfragide são herdeiras dessa nova forma de ver o mundo, aceitando-o como é e procurando uma integração bem conseguida e interessante. No entanto, foram edificadas numa época de transição, e o desordenamento urbano das décadas seguintes impediu desenvolvimentos do mesmo género e da mesma qualidade. O centro cívico e comercial não conseguiu sobreviver ao desenvolvimento industrial na zona e ao surgimento dos grandes centros de consumo. Talvez o desejo do Atelier Conceição Silva fosse criar uma cidade nascida à margem das decisões administrativas.
     Mas o que é facto é que, urbanisticamente, as Torres de Alfragide falharam enquanto motor de desenvolvimento urbano, tal como muitos projectos brutalistas.
     No entanto, considerando a necessidade urgente de intervenção na periferia nos nossos dias, chegamos à conclusão que a maior parte, senão o todo, do desenvolvimento suburbano teve fracas consequências ao nível de promover o sentido de cidade que era desejável. Será, pois, de grande justiça, olhar para as Torres de Alfragide como os londrinos olham hoje em dia para Barbican, como uma “obra-prima imperfeita”, como um gesto arrojado de intervenção urbana que poderá ser de grande utilidade para o repensar da periferia. Um modo de viver cosmopolita, mais do que uma estética, será porventura o principal legado inglês das Torres de Alfragide. |

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1 New Brutalism. Architectural Review. Nº 118 (Dec. 1955), p. 354-61.

2 Reyner Banham. The Style for the Job. New Statesman. Nº 67 (Fev. 1964), p. 261.

 


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